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domingo, 9 de outubro de 2011

sobre a alegria (e um cesto de piquenique)

Era uma luz de vitral, uma luz quase verde, quase dourada, uma luz de montanha acesa, a desenhar os picos contra o azul do céu.
Estava um silêncio de templo, um silêncio de beijo, um silêncio de folhas a estalar sob os nossos pés.
Levávamos a alegria no cesto, misturada na massa que se acamava no molho, regada no vinho com que brindámos à vida,
- a nós.
E o brinde era à saúde, era à esperança, era ao agora daquele domingo, era a esta coisa boa de estarmos juntos e podermos fazer um piquenique.
Levávamos a juventude de antes, agarrada na gargalhada e no canto dos pássaros e na fruta que espalhámos sobre a toalha aos quadrados de antigamente.
E fomos felizes. Porque a felicidade é assim, feita de coisas pequenas - do frio da água a correr na levada, do desenho de filigrana dos fetos, do recorte fofo dos líquenes, da terra solta do chão.
Voltámos ao tempo das omeletas escondidas no pão da véspera, voltámos a sentir a terra e o cheiro verde das árvores. Voltámos, por um dia, a ser miúdos e a escutar o ritmo dos nossos passos.
Tão simples, afinal, a alegria. Às vezes, cabe num cesto de piquenique. E na luz imensa da serra. E no sorriso. Em nós.

sábado, 8 de outubro de 2011

CRESPÚSCULO(S )

O pior do tempo que passa é o silêncio do que não se viveu. É isso que dói no espelho: a imagem baça de um olhar sem luz, os regos secos de uma pele sem brilho, a solidão noturna de uma janela fechada.
Passamos a vida a envelhecer. Sem nos darmos conta, estamos sentados à porta da vida, com o horizonte no chão. Sem que as horas nos avisem, as nossas mãos desmaiam no colo e a memória afoga-se dentro do peito. Sem nos apercebermos, estamos sós, dramaticamente abandonados ao fim, como se não houvesse futuro, como se não houvesse calor, como se de nada tivesse valido toda a luta, todos os sacrifícios, todo o amor.
De repente, meus amigos, o nosso calendário só tem ontens, o nosso mar fica vazio, as gaivotas já não acordam as nossas manhãs. De repente, o mundo fica confinado ao nosso quarto, as palavras ficam escondidas na garganta, o medo toma conta de nós. De repente, já não há ninguém para conversar, já não há ninguém para abraçar, já ninguém diz,
- tem cuidado, volta cedo,
porque já não há ninguém.
Por isso, esta é a hora. Em ponto. É a hora de olhar para quem já viveu, de beijar as mãos que já nos acariciaram, de beber os exemplos de quem andou a marcar os nossos caminhos.
Amanhã, se Deus quiser, há-de ser a nossa vez. E vamos gostar – certamente - que nos sorriam, que nos abracem, que cuidem de nós.
Hoje, agradecemos a vida. E pedimos que nunca, mas nunca, nos deixemos cair na tentação de nos esquecer de viver. Porque o pior do tempo que passa é quando o espelho só nos mostra o que não se fez.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

outonos


Dantes, escrevíamos o outono com o amarelo das folhas que as árvores semeavam no chão; falávamos no adeus dos pássaros, no cheiro da terra molhada ainda cansada de sol, no primeiro dia de escola e no futuro que isso trazia.
Dantes, o outono era uma estação poética de uma luz (ainda) quente, de um mar (ainda) manso, do resto das uvas e do amanhecer das maçãs que começavam a luzir nos quintais.
Hoje, o outono escreve-se de outro modo. Reveste-se da metáfora da vida, de um tempo que passa, que voa, que acaba.
Do verão, fica a saudade, na dor (recente) do que já acabou. Ficam migalhas trigueiras das férias, ficam retratos fechados, calados no computador, ficam as horas que correm, loucas, para o inverno. Porque é lá, nesse tempo de lágrimas brancas e de marés ventosas e de casacos pesados, que afogamos os nossos olhos.
Somos passado ou futuro. Nunca presente. E, por essa razão, não vemos, agora, a poesia clara desta estação. Não ouvimos os segredos do vento que bate na vidraça. Não sentimos o amor dos que (ainda) estão connosco. Não olhamos o tapete castanho que Deus pôs a nossos pés, para podermos passar.
Temos de amar este outono. Porque ele é agora. Mesmo que as folhas do nosso corpo estejam a amarelecer, mesmo que as nossas asas andem a procurar outros mares, mesmo que
Só temos de perceber - mesmo que doa! – que é preciso ir para se poder regressar; que é preciso chorar para se poder rir; que é preciso inverno para ser verão, outra vez.
Há muitos outonos na nossa vida. Este é um deles. E é preciso espreitar a poesia que mora na mansidão quentinha da sua luz e entender a liquidez redonda do tempo que vai e volta diferente, que morre para nascer outra vez.
O outono, meus amigos, é o alimento da primavera, o húmus do amanhã.

sábado, 24 de setembro de 2011

as minhas memorias

(exposição de fotografias Madeira Shopping)
Empresta-me as tuas memórias. Esqueci as minhas, no virar da vida, entre o tempo e o nada, num (quase) silêncio de quem já fui.
Conta-me de ti e do amor que te tinha. Acende os meus olhos com a luz dos teus e faz-me lembrar do tempo em que éramos felizes e estávamos juntos e eu te falava da vida e do futuro e do sol que acorda a esperança em cada manhã.
Aperta-me a mão. Dá-lhe, de novo, a vontade de te acariciar o rosto, como se o teu rosto fosse o meu ninho, a coragem de limpar as tuas lágrimas, a habilidade de voltar a enfeitar de flores a tua mesa. Fala-me de do que as minhas mãos sabiam fazer, antes de me perder de mim. Explica-me como nos aconchegávamos no nosso abraço e nos deixávamos levar a galope no bater do nosso coração.
Empresta-me as tuas memórias, meu amor. Diz o meu nome baixinho. Chama-me, outra vez, mãe, pai, amigo, companheira. Mostra-me o mapa de nós. Pode ser que assim…
Constrói comigo a nossa casa, aquela onde fomos nós, na abrangência do que éramos, corpo, espírito, vontade, futuro. Escreve comigo o dia de ontem, a hora que acabou, o poema que não revimos, o romance que não terminámos, o livro que ficou marcado numa página do meio.
Toca a música daquele dia (qualquer um dos nossos dias), como se isso fosse o último canto dos pássaros. Traz-me a tua voz. Preciso dela para me ouvir. Há-de chegar; eu sei que há-de chegar.
Traz-me a mim. Lembra-me o nome que a minha mãe me deu. Lembra-me a forma dos sorrisos e dos sentires. Lembra-me de nós. E não me deixes cair na tentação de te esquecer.
Abraça-me. Só um bocadinho. Diz-me que me amas, mesmo assim.
Não me lembro do teu nome. Mas nunca, nunca me deixes esquecer que moras dentro de mim.
A minha memória és tu.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

carta de quem se esqueceu


Não me lembro do teu nome, mas conheço o amor que me tens. E isso basta para que eu fique em paz, sossegada pelo aconchego dos teus beijos, embalada por essa toada antiga que me deixa adormecer, sorrindo para os anjos.
Sou agora tua filha, quando me chamas,
-mãe,
e me abraças, na ternura do teu cuidado e no teu gesto suave de tratar de mim.
A tua mão doce-doce aveluda-me o corpo que não é meu, porque já não sei para que serve. E fico bem, menina, outra vez, num jogo de faz de conta que já não tem príncipes, nem princesas, nem dragões escondidos nos castelos das florestas.
Peço-te hoje ( sabendo que te peço o mundo!) que não desistas de mim e do meu amor antigo porque é um amor muito mais velho do que tu e te construiu como és.
Deixa-me ficar no teu colo. Assim. No contrário do que é natural. Guarda-me a dor de não saber o teu nome, ou a cor dos teus olhos, ou quem és e o que fazes na minha casa.
Garanto-te que nada (nem mesmo esta doença de esquecer) me fará esquecer cada olhar teu, cada abraço que me dás, cada palavra doce que inventas para me impedir de morrer.
Não me lembro o nome que te dei quando nasceste. Dentro de mim, chamas-te, apenas
- meu amor.
E, mesmo que não saiba pronunciar as palavras, lê nos meus olhos a minha gratidão.

domingo, 18 de setembro de 2011

11 de setembro

Há dez anos, o coração do mundo tremeu. De espanto. De medo. Nesse dia, os olhos do mundo inundaram-se. Com a água das bombas. Com a água do peito. Nesse dia, as mãos do mundo levantaram-se. Incrédulas. E caíram. Desalentadas. E levantaram-se, outra vez. Lutadoras.
Ainda me dói a memória desse dia de lume e morte. Dói-me o grito que se prendeu na garganta da terra.
O meu mundo [como o de toda a gente] centrou-se na televisão da sala. Como estivéssemos a ver um filme. Como se fossemos, nós próprios, protagonistas do que víamos, em directo. O medo coube nesses instantes e a tarde escureceu.
As torres eram um lego e as pessoas bonecos em fuga para o nada, folhas de outono antes do tempo.
Não sei em nome de quê se mata assim. Sei que, nesse dia, os homens ficaram suspensos e o mundo nunca mais foi o mesmo.
Dez anos depois, a escrever à luz da memória e das imagens que não se pode deixar esquecer, pergunto-me o que aprendemos. Talvez que tudo é breve e frágil e susceptível de acabar. Talvez que o coração do homem é capaz de tudo. E que nada é seguro. Aprendemos que se mata e se morre, como se matar e morrer fosse apenas um jogo de computador.
Aprendemos pouco. Muito pouco. Continuamos a inventar explicações para a nossa crueldade. Continuamos a viver como se a morte nos passasse ao largo. Continuamos a não dar valor às coisas pequenas como as flores e as gargalhadas e o azul do céu em dias de calmaria. Continuamos a acreditar na inexpugnabilidade das torres que, todos os dias, construímos para mostrar o nosso poder. Aprendemos pouco. Tão pouco. Aquele ground zero também existe, às vezes, dentro de nós.
Talvez daqui a dez anos, a Historia se conte doutra maneira: que a água que corre na fundura daquele chão se transformou em vida, lavou o terror e se travestiu de esperança. Porque naquele lugar, também, [e não nos podemos esquecer disto] homens deram a vida para salvar outros homens. Porque naquele lugar, todos os dias, alguém reza e chora e acredita.
Talvez daqui a dez anos. Não. Hoje. É hoje que começa a transformação do mundo.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Setembro

Setembro era enorme. Já tínhamos a pele cansada do sol e a Barreirinha já tinha perdido o interesse do princípio. No intervalo da nossa ansiedade, tínhamos as festas, as vindimas, os pés azuis do lagar, as tardes na Gulbenkian, as conversas no quintal.
Às vezes, sentávamo-nos nos portais a fazer projectos de ano novo: professores novos, colegas diferentes, uma vontade de crescer.
Era um mês de futuro, Setembro. Porque tudo era novo: o corte do cabelo, a roupa para o primeiro dia de escola, o cheiro dos livros, as folhas coladas dos cadernos e, se o ano tivesse sido razoável, uma pasta nova para nos dar confiança e atrair notas boas.
A mãe forrava os livros na mesa da cozinha, ao serão, depois do jantar (O plástico [não aderente] protegia-os das mãos sujas da manteiga da merenda.) sob o nosso olhar atento. Desse gesto cuidadoso parecia depender o sucesso do ano lectivo.
Líamos os textos do livro de Português, na ânsia [antiga] de conhecer histórias novas
(- tem cuidado com as folhas. Lavaste as mãos?)
e espreitávamos o estojo e abríamos os cadernos
1ª período
e deixávamo-nos levar pelas ilustrações e pela novidade.
Olhávamo-nos ao espelho a espreitar as mudanças – cresceste tanto, estas férias! – na ânsia de sermos grandes.
Setembro era um mês estranho: ao mesmo tempo que queríamos que as férias se despachassem e que a escola abrisse, tínhamos pena de perder as aventuras que imitávamos dos Cinco e dos Sete e de deixar ouvir a campainha para o desafio,
- vamos brincar?
Tínhamos tão pouco e não precisávamos de nada. Éramos uns dos outros nessa altura.
Já não se vêem miúdos na minha rua. Estão presos ao computador a viver vidas que não são suas. Já não conhecem o cheiro de Setembro: um cheiro a uvas vindimadas e a livros por estrear. Já não têm sonhos para partilhar com os amigos e já não fazem projectos para as brincadeiras dos recreios.
Agora, Setembro passa depressa. Como a vida. E não temos tempo para nada. Servimo-nos, então das lembranças – memórias boas de um tempo em que tínhamos o futuro ao alcance das nossas mãos.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

A casa [de lava e de livros] de José Saramago





“Procurar o outro lado de tudo” – foi o que fui fazer à Casa, Calle los Topes, Tias, Lanzarote.
Entrei na casa de Saramago como se entrasse num universo que, de algum modo, também me pertencia. Bebi a atmosfera familiar que se estampa em cada canto, como se José [permita-me chamá-lo assim, neste contexto] fosse voltar a cada instante, mudar uma peça de sítio, pegar num livro do escritório e se sentar no cadeirão da sala a ler poesia, depois do jantar e a ouvir o vento a gemer na vidraça.
Pisei o chão negro de basalto que serve de tapete de entrada e senti-me personagem de livro. Olhei para as paredes e reconheci a força de Blimunda, o caminho lento do Elefante. Senti o poder das palavras escritas em cada objecto, na família africana que ficou depois dele ter partido, nas fotografias espalhadas pela sala, na vida que ficou parada numa cama branca guardada numa ilha negra, beijada, em cada manhã, pelos ventos alísios que lhe adoçam o ar.
Senti-lhe o espírito inquieto de homem do mundo que espalha por toda a casa o sagrado da arte, em crucifixos e mistérios e Meninos Jesus que se cruzam com o dia a dia e as montanhas e o mar azul azul e as romãzeiras do quintal.
Passei a mão pela mesa, a mesma que terá recebido as linhas do Memorial do Convento, do Evangelho segundo Jesus Cristo, ou do Ensaio sobre a Cegueira. E sentei-me à mesa da cozinha e tomei um café [Delta] português, porque os amigos são sempre convidados para um café na cozinha. Com Pilar.
Desci depois ao jardim. Abracei a oliveira e mordi uma alfarroba que me tocou na mão.
Sentei-me, então, na pedra negra a olhar o mar. Como ele. Como se ele estivesse ali e me dissesse,
- olha o mar sente o vento inventa o entardecer e pensa que és apenas um grão dessa cinza que o vulcão vomitou
Assim, sem pontuação. De um fôlego. Prendendo no peito o ar. Porque o resto, as letras, as palavras, a manta vermelha, o computador, os últimos livros estavam na biblioteca. Teria ficado ali, a contemplar a fotografia do homem mais sábio do mundo que não sabia ler nem escrever ou, simplesmente, a pensar nas palavras sem medo de um Português que escolheu Lanzarote para ser feliz e que mandou parar todos os relógios nas quatro, porque foi a hora em que redescobriu o amor.

Graça Alves

sábado, 3 de setembro de 2011

Cronica de Lanzarote


Todas as ilhas são especiais. Concentram em si todos os elementos – o fogo do vulcão, a força da terra, os ventos brumosos de outros lugares e a vastidão azul do oceano. As ilhas têm um valor sacral, como se guardassem o mundo inteiro e nos aproximassem mais do universo.
Um ilhéu vive no mar. E isso dá-lhe a ilusão de ser marinheiro e andar, livre, num mundo que se abre todas as manhãs às portas da praia. Talvez por isso, as ilhas me atraem tanto. Talvez por isso também, quando posso, vou à procura de ilhas-irmãs, de lugares que, como o meu, me mostrem miniaturas do mundo, numa espécie de puzzle que vou montando na minha inteligência e que vai ajudando a desenhar os contornos do meu entendimento da vida.
Cada ilha tem uma cor diferente. Porque veste a cor do espírito que a habita. A minha, por exemplo, é verde e tem água a correr-lhe nas veias. É iluminada de flores e de sol e tem a alegria do bailinho e o perfume do vinho e a arquitetura dos vimes e a delicadeza dos bordados. Fez-se mulher muito depressa a minha ilha. E cresceu. Depressa, também.
Este ano, conheci outra, com cores negras de lava e fogo. É um lugar mágico, onde a terra se abre no chão e se percorrem os caminhos que o vulcão desenhou. É um lugar onde a mão do homem se deixou guiar pela mão da natureza e deixou que Deus fizesse o resto. É a ilha de Manrique temperada com as palavras de Saramago. É a pedra-magma que de tão negra parece azul [como diria Baudelaire]. É o mar ali ao pé. E os ventos alísios. E o sossego. E o redondo das videiras, enterradas no chão.
Voltei, agora para casa. Trago os olhos mais cheios de mundo. Mais quentes, talvez. Mais conscientes também da possibilidade de ser dos outros sem perdermos a nossa identidade.
Lanzarote recebe o mundo. Como nós. Mas soube preservar a sua personalidade. A alma do vulcão ainda queima na ilha. Derrama-se no orgulho nas casas baixas e caiadas, nas madeiras verdes e azuis, na luz dos lagos subterrâneos, nos pés de aloé que curam as dores, no sol que, todos os dias a faz sorrir.
Este ano, acrescentei esta ilha ao meu arquipélago interior e agradeci a Deus porque vivi para a conhecer.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

NOVOS MARINHEIROS

Dizem que sim. Que vão sem olhar para o que ficou na margem da vida. Que hão-de partir para onde for preciso estar, na entrega total de quem são, na verdade de cada um.
Hão-de derramar-se no chão e deixar, nesse despojamento, os desejos do mundo. Hão-de vestir-se de Deus e deixar que Ele faça o resto. Vão. Mesmo que as lágrimas teçam cortinas nos seus olhos. Mesmo que o medo lhes prenda as liberdades. Mesmo que a dor grite, ensurdecendo os silêncios necessários para escutar os sussurros da brisa aos ouvidos das árvores ou a doçura dos rouxinóis a enfeitiçar as manhãs.
O mar. Estes rapazes procuram o Mar. E o Mar tem nome de irmão, de esperança e de coragem. O Mar tem nome de entrega e veste uma túnica limpa e tem abraço de Pai e uma lei que aponta futuros novos, mais azuis.
O mar. Estes rapazes têm o Mar no peito, pendurado numa cruz que guardam no colo e que é arma de luz e essência de vida.
Hão-de conhecer a direcção dos ventos e a força dos mares. Hão-de lançar a âncora muitas vezes. Hão-de desencalhar as canoas que derem à costa no calhau. Hão-de partir e regressar muitas vezes . Hão-de ir. Estes rapazes hão-de ir. Muitas vezes. E voltar. Muitas vezes também.
Dizem que sim. Que o Mar os inspira, porque são do Mar. E o Mar é esse infinito com voz de Deus, a mesma voz que, um dia, os chamou pelo nome e pediu a cada um:
- Vem. Segue-me.
Dizem que sim. Como terão de fazer todos os dias das suas vidas.
Que o Mar [imagem do infinito de Deus] os guarde. Que eles saibam ser marinheiros fiéis. E se façam à Distância. Porque nesse longe mora o coração dos homens.
E se precisarem, há muitas canoas no mar. As nossas. Dentro delas, temos braços para ajudar a remar.

domingo, 10 de julho de 2011

NEGOCIOS


Hoje, sou eu que lhe empresto o meu sorriso. É pelas vezes que me emprestou o seu. Entrego-lhe aquilo que sei fazer e que é o melhor de mim. Em troca, peço-lhe que esteja comigo, na contemplação deste sol e deste mar que abraça esta ilha onde moramos e que nos habita, também.
Fazemos assim, esta semana: trocamos abraços por palavras. Eu conheço palavras doces: palavra amor, palavra amigo, palavra ficar. Trocamos sonhos antigos de futuros por segredos de um tempo bom em que nos bastava viver para ser feliz. Trocamos apertos de mão por esperança e ameixas amarelas por flores do campo.
Tenho silêncios pequeninos para troca. Preciso daquele Silêncio com voz de Deus, aquele que acende as noites mendigas de lua.
Preciso de frases brancas e metáforas novas. Dou em troca o trabalho das minhas mãos e a vontade de mudar alguma coisa, também dentro de mim.
Hoje, ofereço-lhe as minhas palavras. Faça-as suas, se isso lhe der jeito para completar a caderneta de cromos que é a vida. Precisamos uns dos outros. Todos. Uns têm os sentidos, outros os não-ditos; uns têm a ideia, outros a vontade; uns têm a esperança, outros a coragem; uns têm a música, outros os instrumentos.
Tenho alguns cromos repetidos. Faltam-me ainda muitos para completar a caderneta. E há uns raros… se alguém tiver…
Preciso de si, portanto. E das suas histórias. E das suas lembranças. E da verdade da sua leitura.
Entretanto, empresto-lhe o sorriso das minhas palavras. É pelas vezes que me sorriu. E me deu ânimo. E me abraçou.
Fico à espera. Tenho cromos para troca. Mas tenho, também, muitos quadradinhos da caderneta por completar.
Um abraço.

sábado, 2 de julho de 2011

cartas, carteiros, mulheres

A rua da minha infância era uma rua de mulheres, na parte da manhã. Todos os dias, por volta das onze, enquanto o almoço ganhava corpo no fogão e a roupa da cama se arejava à janela, as portas entreabriam-se e elas esperavam o carteiro no caminho.
Era a hora de todas as esperanças, de alguns medos, de sonhos eternamente adiados. O Sr. Agostinho tinha os olhos da cor da distância, claros de mar e de saudades e uma voz doce, um pouco enrouquecida do sol e da chuva, dos subires e desceres das ruas daquele tempo.
Na bolsa de couro do Sr. Agostinho, guardavam-se segredos que as folhas de linhas azuis revelavam , no rasgar cuidadoso do envelope, no estalar do papel, na nota que vinha dobrada em quatro e que cheirava às venezuelas e aos brasis dos sonhos velhos,
“Minha querida e sempre lembrada Maria”
na eterna vontade de ter casa sua, de trazer anéis nos dedos ou um dente de ouro a iluminar o sorriso.
O Sr. Agostinho parava a rua da minha infância, por volta das onze: era a carta de chamada que preparava outras partidas, era a prova de vida do soldado que tinha ido lutar pela pátria, em nome de um dever juvenil nas picadas do ultramar, era a saudade molhada de sal de outros mares de quem tinha ido à procura de mundos, de vidas, de quem tinha fugido da tropa, de quem não estava. Simplesmente.
Os ausentes faziam pontes de papel com os que tinham ficado na rua da minha infância:
- Vizinha, recebi carta do meu António.
E a vizinha lia as palavras e os silêncios e os não-ditos e as perguntas e as respostas e as promessas,
- adeus, adeus, até ao meu regresso,
que alimentava as semanas das mulheres da rua da minha infância.
- Então, Sr. Agostinho?
- Hoje, não há nada.
E o silêncio. E o medo. E a angustia de receber uma carta com a tarja preta do luto.
O Sr. Agostinho já não distribui as cartas e os postais de paisagens de neve que chegavam em pleno Agosto. Guardo dele, os olhos e a voz. Guardo o sorriso. E a imensa curiosidade de criança de conhecer os futuros que abrigava dentro do saco.
Já ninguém espera o carteiro na minha rua. O coração já não bate à vista do selo. Já ninguém limpa as lágrimas ao ponto final,
“Adeus até ter notícias tuas”.
E é pena.

sábado, 18 de junho de 2011

rouxinois


Eles cantam para acordar o dia que acende, todos os dias, a luz à ilha. Por causa deles, as flores arranjam o cabelo e alimentam o lume colorido das fogueiras dos jardins. Por causa deles, os olhos das casas abrem cedo e espreguiçam os braços dos tapassóis para deixar entrar a vida que amanhece.
Ouça-os comigo. Só um bocadinho. Beba comigo cada nota do seu cantar, como se se tratasse de um refresco do céu. Há os rouxinóis das árvores e os outros, os de Deus, os que nos são enviados para encantar as manhãs, os que nos iluminam os instantes com sorrisos, os que nos seguram as mãos nas dores, os que nos aliviam o medo, os que conhecem as palavras que o coração precisa, os que vivem connosco a normalidade da vida e comungam das nossas horas, do nosso pão, dos nossos risos e das nossas lágrimas.
Temos de os escutar. Os rouxinóis têm asas na voz. Quando pousamos na melodia poética do seu canto, abrem-se as portas do mar e partimos com eles à procura da esperança. Vamos à descoberta das palavras-beijo que o seu canto nos inspira. Vamos e, neste ir, arrastamos possibilidades de futuro, de alegria, de regressos diferentes.
Está a ouvir? Os rouxinóis de Deus estão a cantar para si, agora. Esteja atento aos olhares, aos sorrisos, às palavras, aos silêncios. Os rouxinóis de Deus andam aí. Muitas vezes, só sentimos a sua falta quando eles se calam.
Deixe-se embalar pela música. Deixe-se ir. Deus inventou os rouxinóis para iluminar a sua vida.

sábado, 4 de junho de 2011

NOS

Vestimos a camisola? Está nela marcado o símbolo que nos une, um grito comum, o mesmo clube, a mesma ideologia, a mesma voz.
Quando vestimos a mesma camisola, somos um, apesar das nossas diversidades, das diferenças das nossas vozes. Ficamos juntos num lugar só nosso. Como se o mundo fosse a nossa casa e nós fôssemos capazes de entoar o refrão do mesmo hino.
A camisola irmana. Tem a função da bata da nossa meninice: esconde a marca da nossa riqueza e da nossa pobreza; esconde o valor do que vestimos para mostrar aquilo por que lutamos.
Vestir a camisola implica morrer por ela, viver em função do que ela significa. Com ela vestida, vibramos pelo nosso clube, mesmo que ele nunca ganhe a taça; gritamos o nome dos candidatos, mesmo que ele nunca se eleja; damos as mãos para rezar ao mesmo Deus, calamos os mesmos medos, amparamos as mesmas quedas.
Às vezes, porém, vestimos a camisola para dormir. Nessas noites, vestimo-las separados. Sentimo-nos confortáveis, porque, numa casa qualquer, alguém terá vestido uma camisola semelhante à nossa. Talvez sonhemos sonhos semelhantes.
Vestir a camisola significa estar junto. Apesar das diferenças do coração. E isso é muito bom!

domingo, 29 de maio de 2011

UMA HISTÓRIA DE MIM


Era uma vez
e a minha história começa num tempo em que havia tempo para ser feliz. Os miúdos conheciam a alegria de estar juntos e de brincar, descalços no terreiro, e de jogar ao pião nos quintais e de saltar à fogueira nos caminhos, nas noites de S. João.
Eram tempos de liberdade, os tempos da nossa meninice: subíamos às árvores para apanhar as cerejas que pendurávamos nas orelhas, como se fossem brincos de rubis doces; esfolávamos os joelhos e chorávamos depressa, que o tempo era de rir; fazíamos os deveres na mesa da cozinha, depois do
- cala-te, agora, um bocadinho. Vai dar Simplesmente Maria,
que era uma radionovela que fazia sentar a minha avó e a Maria, iguais na manifestação de solidariedades à protagonista, à frente de uma xícara de café, a partilhar lágrimas e comentários.
Lanchávamos, depois, pão com manteiga na mesa de vime do quintal, antes da retoiça e dos gritos e das aventuras, rua abaixo, fazendo voar a bola de quintal para quintal. Quando chovia, guardávamo-nos dentro das casas, no beijo de um livro – muitas vezes requisitado na carrinha da Gulbenkian, que o dinheiro não dava para esses luxos – ou de um jogo da glória ou de cartas que animava as tardes, antes do hino que iniciava a emissão da televisão. Já estava na 4ª classe, quando ela chegou à nossa casa. A preto e branco. Os bonecos animados de plasticina da Polónia e a voz de Vasco Granja acordavam a minha adolescência.
Mas era à noite, depois de um banho e do jantar que a magia tomava conta de nós e enrolávamo-nos nos braços da mãe ou no colo do pai e ouvíamos o Se Bem me Lembro do Vitorino Nemésio e contávamos o dia ou ficávamos, assim, calados, envolvidos no amor daquele abraço, a beber a força que haveria de nos levantar, no dia seguinte.
Passávamos assim o tempo no tempo do
- era uma vez.
E éramos felizes. Tínhamos a vida aos nossos pés.

terça-feira, 24 de maio de 2011

A curva da felicidade

A felicidade mora ali. Tem forma de sorriso e perfumes de campo quando as flores pequeninas explodem do chão. Tem sabor de coisa conquistada. Tem palavras vestidas pelo sol da manhã. Põe-se ao peito como um colar e contagia-se, porque queima e ilumina e enfeitiça. Está ali. Na curva do hoje, escondida debaixo das pedras do medo, da desconfiança, da doença.
Temos de a descobrir. Ela está ao alcance da nossa mão. Está nas coisas pequeninas que compõem as horas dos nossos dias, nos silêncios iluminados dos olhares que incendeiam os nossos, naqueles momentos de gelo que nos impedem de olhar os céus. Está no abraço apertado dos amigos, no aconchego doce das casas, no sabor antigo da sopa de couve que fumega na mesa, no beijo que nos espera ao fim do dia.
A felicidade está em nós: em nós connosco, em nós com os outros, em nós com Deus – tenha Ele o nome que tiver.
Ao virar da curva da nossa solidão, está a pista para a encontrar. Fácil, fácil. Talvez por isso não valha a pena nos fixarmos nos negrumes da noite, nas pequenezes dos nossos egoísmos, nas palavras-pedras que atiramos para matar, nas coisas-poucas que nos fazem sofrer e chorar e lutar contra nadas que tomam conta de nós.
A felicidade mora aqui. (Está a ver o meu dedo apontado para mim, para si, para o mundo?) Bem no centro de nós.
Às vezes, iludimo-nos nas formas de a encontrar. A sua verdadeira ajuda está mesmo aí, nessa mãos que vive no fundo do seu braço, nesses pés que suportam o seu corpo, nesse coração que teima em bater, nesses olhos capazes de se embriagar com a beleza das coisas.
Se quiser, vou consigo. Precisamos um do outro para encontrar a curva certa, sem nos perdermos no caminho.
Vamos ser felizes? Diga que sim. A vida fica tão mais simples.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Escolhe a vida e viverás

Não há outra escolha. Não há outro meio para sobreviver à angústia, ao desalento, à noite destes tempos que estão velhos. Não há alternativa para lutar contra a(s) morte(s) de cada dia.
Escolher a vida é descobrir que há sorrisos atrás do véu das lágrimas que, tantas vezes, nos impede de ver o que fica para além do que se vê. É encontrar a fonte de luz que as nuvens coam e que luta, tantas vezes, para abrir brechas nos céus; é perceber a música que o vento compõe nas cordas das árvores.
Não há outra escolha senão a da vida. De contrário, a tristeza toma conta dos nossos silêncios, ensurdecemos com os gritos suicidas do desespero, dos erros que cometemos, porque dói menos, porque é mais fácil, porque sim. Apenas porque está na moda, porque é de velhos e de beatos defender os valores antigos.
Estamos sós, cada vez mais longe dos outros, cada vez mais longe de nós. Perdemo-nos das nossas famílias, perdemo-nos nos caminhos que nós próprios traçámos, fechámo-nos dentro do nosso condomínio interior.
Esvaziámos as palavras. Dizemos,
- amo-te,
sem nada dentro, um verbo sem alma, sem para ti, sem amorizar os gestos, o coração, os olhares.
Lembrar-se da vida é escolhê-la. É fazer dela nossa, mas para os outros. É descobrir-lhe o sentido na verdade de quem queremos ser.
“Escolhe a vida e viverás”. Teremos nós outra escolha?

sexta-feira, 13 de maio de 2011

eu vou

- Eu vou.
É esta a chave desta semana. O verbo ir reveste-se de um significado maior, porque coragem, porque serviço, porque caminho que se faz, acertando os passos com o coração.
Os jovens entendem esta linguagem. Sabem que as mãos servem para dar, que os braços servem para abraçar e que as palavras têm o poder de salvar e perdoar e beijar e mudar a ordem do universo.
Alguns são chamados. Especiais. Os fortes respondem,
- presente,
mesmo sabendo o que isso significa de entrega, de despojamento, de escolhas. Procuram, então, o seu lugar, a melhor maneira de seguir as pegadas que Deus deixou na areia do chão. Deixam as redes arrumadas na praia, libertam-se do que não vai ser preciso e deitam fora tudo o que pesa. Sabem que a vida vai ser outra e que o caminho é para lá, sempre para lá, para mais perto das gentes, para mais perto de si.
Quem aceita o desafio, levanta a âncora, prepara a luz para alumiar as noites, põe a esperança na bagagem, deixa no cais a saudade do que fica e vai. Segue o caminho que escolheu. Porque nesta viagem, é possível escolher: entre carismas e talentos, entre silêncios e palavras, entre o amor e o amor. Esta é a escolha definitiva. Igual para todos os serviços, igual para todas as marés.
- Eu vou
é a decisão da generosidade, o grito jovem de quem não tem medo da voz do vento que chama pelo seu nome, de quem não tem medo de arrumar os passos, de arrumar a vida, de procurar a razão para a sua felicidade.
Quem vai, vai. Mesmo sabendo das tempestades e da intensidade dos sóis que parecem derreter as coragens. Mesmo sabendo que, às vezes, será um navegador solitário que luta contra a indiferença do mar.
Quem fica prepara o mar. Alisa as ondas para facilitar o caminho. Fica às portas dos regressos para poder ajudar.
É preciso não ter medo de escutar. O seu nome é o mais bonito de todos os nomes. Vá. A decisão de ir é sua. Leve um abraço para o caminho.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

FESTA DA FLOR

Venha comigo beijar a cidade. Deixe-se enfeitiçar pela beleza das flores que enfeitam as ruas. Deixe-se embebedar pelo aroma doce dos miúdos que desfilam nas ruas despidas de angústia. Deixe que o seu coração arda no abraço da festa. Deixe que o tempo se espreguice na meiguice dos olhos que se espalham nas montras, que se derramam nos jardins inventados da praça, que se pousam nas mãos que pegam ao colo o que a natureza oferece.
Deixe-se ir. Olhe para cada sorriso que se cruza com o seu. Sorria também. Talvez assim a dor fique mais branda. Talvez assim a primavera amanheça neste maio que arde no peito como se fosse Emaús, como se os caminhos não estivessem despidos de passos, como se o dinheiro ainda desse até ao fim do mês, como se
A rir, como se a vida fosse só isso – rir – duas crianças. A mais velha tem flores na mão. São flores pobres daquelas que não se compram nas floristas, são flores das que se apanham no chão dos jardins dos outros, são flores básicas, daquelas que qualquer menino sabe desenhar na inocência branca da folha da escola. Trá-las em punhado, ensolarando a mão. Trá-las assim: apertadas, como se ali se escondesse o futuro, apertado, ele também.
Não tem nome. A menina da minha história não tem nome. Nem idade. Nem mais nada. Tem, ao colo, um menino que lhe chama
- mãe.
Mãe é o nome da menina da minha história. Deixou os sonhos floridos de rosas vermelhas, no dia em que acreditou na ilusão de um amor menino que lhe oferecia um ursinho de peluche no dia dos namorados.
Traz flores brancas na mão. E ri. Como se a vida fosse de rir. Há-de fingir que vai para a festa. Há-de falar ao menino e dizer-lhe,
- meu amor,
como se isso fosse o bastante, como se as flores da festa fossem para eles, como se
Venha. Vamos deixá-los acreditar que amanhã ainda vai ser melhor, porque amanhã. Só por isso. Por ser amanhã.
Escolha a sua flor. Já escolhi a minha. Ponha-a na lapela, ou no cabelo ou no peito. Deixe que ela perfume a sua vida.
Ouça a música que a natureza lhe oferece. É para si. Ouça-a. Deixe-se ser feliz. A cidade tem um beijo escondido para lhe dar. Aceite-o, por si, por mim, pela esperança que o riso da menina da minha história nos traz.

terça-feira, 3 de maio de 2011

ÀS MÃES. À MINHA

Há um lugar no coração dos homens que tem a forma de colo. Redondo. Quase uterino. É feito do amor das mães, muito maior do que se escreve na tatuagem do braço, porque desenhado a fogo na vida da gente.
Nesse lugar, ficam guardados os beijos que beberam as nossas lágrimas, acalmaram as nossas dores, calaram os nossos gritos e refrescaram as nossas testas. Esse lugar foi a semente do que somos: gente com ternura dentro.
Abrigámos lá os nossos sonhos-meninos, depositámos lá as nossas esperanças, escondemos lá as desilusões e arquitetámos o futuro no mundo que os olhos delas nos mostravam.
Desse lugar, partimos à procura do sul, do sol e do sal, porque foi lá que nasceu para nós, só para nós, o calor, a alegria e a vontade. Porque é lá que os anjos dormem, enredados nas contas que as mães desfiam por nós. Ali, Deus colocou a semente da força, num berço – braço – abraço que nos embala no silêncio das nossas vigílias. Um aconchego, ora andorinha, ora papoila, ora folha caída no chão, nunca geada.
No coração dos homens mora o que fica das mães, depois que elas se vão embora: o segredo dos sorrisos, a ternura das mãos, o calor infinito do abraço. Nesse lugar, somos eternamente meninos, eternamente amados, eternamente filhos.
O retrato das mães fica sempre descoberto nesse lugar que Deus criou no coração dos homens. Imenso. Doce. É que Deus inventou as mães para nos explicar o amor. E elas, generosas, aceitaram a missão.
É assim com todas as mães. Com a minha.

terça-feira, 26 de abril de 2011

primavera antiga


Eles tinham lágrimas nos olhos e asas na voz. Falavam de liberdade e de uma primavera que explodia dos canos das espingardas, em balas rubras de cravos que acendiam sorrisos nos caminhos. Falavam de um Abril que rompera as grades das prisões e gargalhava em esperanças num futuro melhor.
Tinham silêncios nos olhos iluminados. Tinham vontade de ganhar o mundo, construindo, outra vez, um país de verdes e de mares, enfeitado de colares de maios que desabrochavam no pescoço, como se fossem estilhaços de sol.
Tinham cantigas na garganta. E o calor ensaiava passeios ao Parque de Santa Catarina e ao Palheiro Ferreiro, saltando à laje e fazendo rodas e roubando beijos. Tínhamos omeletes frias adormecidas no pão da véspera, dentro da cesta do lanche.
Eram dias de viver, aqueles. Éramos miúdos e não percebíamos nada destas coisas de povo unido ou de grafites nas paredes. Estávamos na 4ª classe e, com sorte, já não fazíamos exame e já não nos iam perguntar dos caminhos-de-ferro de Angola e Moçambique ou dos rios que enchiam a maré da nossa memória. Com sorte, podíamos inventar à vontade a forma dos comboios e o serpentear dos afluentes. Com sorte, não íamos precisar de dobrar direitinha a margem da folha de prova para escrever na primeira linha:
Ditado.
Havia sol, nesse tempo. A Barreirinha já retocava de azul os varões dos muros e já arejavam o toldo para o estender sobre o nosso calor.
Havia sol, sim. E florinhas amarelas nos caminhos. E uma gaivota que “voava, voava” e tinha “asas de vento” e “coração de mar”.
Era Abril, depois Maio, primavera ou liberdade. Era o futuro. Eles tinham a força na voz e a coragem nos punhos. Nós estávamos a acabar a 4ª classe e éramos felizes.

sábado, 23 de abril de 2011

POR ESTES DIAS DE PÁSCOA

Quando a noite se enrola nos nossos dedos e o luar apaga o que resta de luz, olhamos para o Céu, à procura das estrelas. Mas, às vezes, os nossos olhos têm uma cortina de bruma e não vemos nada. Absolutamente nada. São as sextas-feiras (ora santas , ora não) das nossas vidas: tempo de angústia e de dúvidas, tempo de solidões e de lágrimas; tempo de deserto e de vazios. Nesses dias, a cruz rasga os restos dos véus dos nossos templos. Implacável. Como se nada fizesse sentido.
Mas há um Homem abraçado à nossa Cruz. Quando damos conta da Sua presença, a dor fica mais branda e o rasgo do ar fica com a forma de um sorriso. Há-de ser o Sorriso Iluminado de Deus que aquece o nosso frio.
Aos poucos, a nossa cruz vai tomando a forma de um abraço e vai guardando o rio dos nossos olhos dentro do peito. O peito da cruz tem a forma de um coração. O coração do Homem está agarrado à nossa cruz. E segura nela como se o Seu coração fosse o colo da nossa mãe. É feito da essência do amor.
O silêncio faz-se grito, então. É um Aleluia florido de sinos, doce de amêndoas de chocolate, perfeito, tão perfeito que não cabe dentro da nossa alegria. Há vozes de mulheres iluminadas de vida que passam a palavra: Ressuscitou! Há esperança. Afinal, há espaço para a esperança dentro do nosso sofrimento.
É domingo. De manhã. Primavera. Há um anjo sentado à nossa espera. As asas cobrem o nosso medo. A nossa dor está em cacos, no chão, enrodilhada nas ligaduras. A morte também. Em pó.
E o mar abriu-se para nos deixar passar. As nossas cruzes servem de bordão. Somos muitos. É Páscoa. Deixámos a solidão no chão das três da tarde.
O Homem da Cruz afinal era Deus.

domingo, 17 de abril de 2011

A SEMANA MAIOR

O tempo tem asas. A vida passa a correr, entre o sol e o trabalho, deixando-nos as mãos cheias de coisa nenhuma. E estamos na Páscoa, outra vez. E, outra vez também, só temos um punhado de amêndoas na algibeira e a vontade do mar e do sono do feriado da sexta-feira.
Mas o tempo pousa. E uma voz antiga lembra-nos do tempo em que, por estes dias, não se podia varrer, não se vestia vermelho e íamos à igreja e participávamos de um Mistério que fascinava o nosso coração-menino.
Vamos lá, outra vez. Vamo-nos sentar à mesa e deixar que o Dono da Ceia nos lave os pés cansados de andar. Vamos comer e beber do que Ele nos oferece e participar dessa Vida que é para nós. Vamos usar dessa alegria sóbria da Quinta-Feira , porque sabemos o que vem a seguir, porque conhecemos o preço do amor. Terá a forma de cruz, no dia seguinte. Um Homem-Rei toma o patíbulo como trono. De braços abertos, nessa hora final das três da tarde, pede perdão por nós, promete-nos o Paraíso, entrega-nos a Mãe, sofre o abandono do Pai, bebe o vinagre da sede, cumpre, cumpre-se e entrega o Seu Espírito. Na Sexta-feira, sacerdote e templo unem-se na Cruz. Deus morreu. O resto é silêncio. Um silêncio dorido de morte. Calam-se os sinos. Os altares estão nus.
O Sábado acorda triste. Estamos vazios. Este é o dia da ausência. Um dia que só se levanta ao anoitecer, quando o fogo se acende, quando as luzes rompem a escuridão, quando a água renasce, pura, para libertar da escravidão, quando a Palavra rebenta a pedra do sepulcro, quando os sinos explodem, quando o Aleluia rasga a tristeza e a morte cai, derrotada, aos pés da Cruz.
Ouvimos, então, a voz do passado,
- Mãe, já se pode brincar?
E a mãe que sim. Porque é Domingo de Páscoa e os sinos enfeitam o ar que cheira a jasmins e a comida de forno. Porque a Vida ganhou a batalha. E a esperança. E a alegria.
Tínhamos um vestido às flores para estrear e uma fita de cetim a segurar o cabelo. E tínhamos a vida. E o tempo. E o mundo. Tudo o que se seguiria havia de ser bom: nem Deus estava morto, nem os pássaros tinham ficado sem voz. Afinal, ainda havia esperança.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

LÁGRIMAS


Quando a maré enche dentro do peito, há uma gota de mar que queima nos olhos e traça caminhos de lume no rosto. Nesses dias de fogo líquido, há histórias suspensas nos silêncios: são histórias de felicidades ou de dores, de chegadas ou de partidas, de nascimentos ou de mortes. Nesses dias de maré quente, o tempo guardado em apertos na garganta, explode. São as lágrimas que rasgam a angústia ou diluem a alegria que, de grande, não cabe dentro da gente.
Falo de lágrimas, hoje. Porque as lágrimas são a expressão mais pura da nossa humanidade. Porque são a forma que a alma encontrou para expulsar as incapacidades da nossa pequenez. Choramos porque sim. Porque somos gente de chorar, como somos gente de rir. Porque temos sentimentos e amamos e sofremos e rasgamos as raivas. Porque temos coragem de sermos sensíveis e poetas e meninos. Porque precisamos desse mar para nos aliviar da profundidade dos grandes sentires.
As lágrimas de todos os homens são iguais: “Nem sinais de negro,/ nem vestígios de ódio./Água (quase tudo)/ e cloreto de sódio” . Às vezes, fazem ver o perdão; outras vezes, mostram coisas que os olhos secos não deixam enxergar. As lágrimas são sinal de bem-aventurança, porque nos irmanam, porque nos renovam, porque limpam os excessos que nos impedem de olhar para o que vale a pena.
Em cada lágrima, uma história. Dou por mim a pensar que Deus há-de recolher as lágrimas de todos nós e fazer com elas o mar que vejo lá em baixo, a refrescar os pés desta cidade. Por isso, olhar para a imensidão de azul que nos cerca é olhar para os olhos de todos os homens que tiveram a humildade de chorar. Estão lá todas as vergonhas, todos os sucessos, todos os medos, todas as conquistas, todas as alegrias, todas as dores, todas as emoções. O estado líquido do mar é feito do choro das caravelas, do pranto das despedidas, das solidões.
Às vezes, quando o sol as bebe, as lágrimas sobem ao céu e tomam a forma de estrelas ou de pingos de chuva. Outras vezes, solidificam no fundo do mar e disfarçam-se de pérolas. O mundo é feito também da matéria das nossas lágrimas. Elas são a voz da nossa humanidade. E valem todas por igual.
Vê o mar? Está a enchê-lo de histórias novas. E o Guardador das Lágrimas vem consolá-lo, já, já. Amanhã, haverá uma nova estrela no céu.

terça-feira, 12 de abril de 2011

As palavras

- Mãe, de que cor são as palavras?
- Têm as cores das tuas aguarelas: são brancas quando o teu sorriso as ilumina; azuis quando o teu anjo as protege; vermelhas quando as fazes correr, felizes, por essas encostas. Têm a cor que tu quiseres, meu amor.
- Mãe, a que cheiram as palavras?
- Têm o cheiro da manhã ao acordar. Cheiram a ventos antigos e a maresias; cheiram a morangos acabados de colher; cheiram a uvas vindimadas; cheiram a flores e a cera. Têm o cheiro que tu quiseres, meu amor.
- Mãe, a que sabem as palavras?
- Têm o gosto da vida acabada de chegar. Sabem a leite e a sol; sabem a mel e a cerejas; sabem a sal, … Têm o gosto que tu quiseres, meu amor.
- Mãe, o que dizem as palavras?
- Dizem mãe; dizem amigo; dizem amor e saudade; dizem sonhos; dizem lutas; dizem vida; dizem morte. Dizem o que tu quiseres, mas, a elas, meu amor, diz – lhes amor,

domingo, 10 de abril de 2011

O SILENCIO DE DEUS

O silêncio de Deus nem sempre é branco. Quando a nossa vida se derrama, tem valor de solidão e não responde às lágrimas, nem aos pedidos, nem aos segredos que guardamos na intimidade de nós. Quando o dia se levanta, porém, o silêncio de Deus tem cores de sol e de mar e de campos floridos e de amigos.
Gostava que as minhas palavras se envolvessem nesse silêncio, no que deixa falar os sentidos, no que desnuda o coração, no que permite que se escute a voz das sílabas, o canto dos pássaros, a poesia que as flores declamam ao rasgar a terra. Preciso deste silêncio para que as palavras fluam na verdade do que sou, do que quero dizer. Preciso deste silêncio para falar de esperança.
O silêncio de Deus nem sempre é bom. Quando perguntamos a razão da dor e do medo, tem valor de terra árida e não diz nada à noite que se apagou de estrelas, nem à força das tempestades, nem à vergonha que escondemos dentro dos olhos. Quando a calma volta, porém, o silêncio de Deus é beijo de fruta acabadinha de colher.
Gostava que as minhas palavras soubessem a este silêncio, ao que adoça a amargura das horas, ao que afoga as metáforas más, ao que esconde os desencantos, ao que mostra a luz e o horizonte,
O silêncio de Deus nem sempre é compreensível. Quando a morte chega, sorrateira, e engana os sonhos da juventude, tem valor de chuva de verão e não responde às dúvidas, nem à traição, nem ao desamor. Quando o sol regressa, porém, o silêncio de Deus veste-se de Ressurreição.
Gostava que as minhas palavras se vestissem também deste silêncio, o que lembra a roupa feliz dos domingos de manhã, o que ilumina as casas e as memórias boas, o que traz alento à falta de tudo.
Face às tragédias da vida, parece-nos, muitas vezes, que Deus se cala. Não ouvimos nada dentro do nosso pranto. Talvez seja preciso que deixemos que esse silêncio se transfigure em nós. Como as sementes que morrem no chão. Como os pássaros que vão e que voltam. Como as asas da primavera que voltam a acordar as nossas manhãs.
Gostava de envolver as minhas palavras nesse silêncio. O de Deus. O que deixa ouvir o canto dos pássaros, o mar no calhau, os nossos próprios silêncios.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

via (quase)sacra

Cada dia, um passo. É assim que construímos o nosso caminho, uma via que nem sempre é sacra, mas que é sempre feita com aquilo que somos.
Às vezes, debaixo dos nossos pés, as flores enfeitam as pedras e adoçam o chão; outras vezes, há espinhos disfarçados nas ervas que pintam a terra com o nosso sangue. Às vezes, o sol beija o frio do nosso andar; outras vezes, escalda-nos a cabeça e impede-nos de avançar.
Sentimo-nos sós. Somos condenados pela incompreensão dos outros, pela falta de cuidado, pelo vazio dos olhares que não vêem para além do que mostramos. “Eis o Homem” (Jo 19,5). Mais nada.
Transportamos sempre uma cruz. Nela se inscreve a totalidade da nossa humanidade, as dores de todos os dias, os desencantos, as incompreensões, a noite da nossa maldade. E caímos, e levantamo-nos e caímos outra vez.
Às vezes, um olhar acende o nosso. Há sempre alguém aos pés da nossa dor. Há sempre alguém que fica quando todos se vão embora. A Mãe. O amor incomensurável de um coração que abraça o nosso desespero e nos prende a esperança. O abraço do amigo que ajuda a segurar a Cruz, que amansa o medo e perfuma o ar, a mão que limpa as lágrimas da nossa tristeza, que não desvia o olhar do nosso rosto desfigurado.
A nossa via (nem sempre sacra) é feita de tropeços e de quedas, de culpa e de gratidão, de arrependimentos e de coragens. Às vezes, a vida despe-nos da nossa dignidade de homens, da nossa capacidade de ser mais. Aprendemos, então, o valor da verdade, da nossa. E mostramos a nudez da nossa sinceridade.
O caminho fica, então, mais simples. O sofrimento faz-nos libertar do que nos pesa, do orgulho que nos incha, do tamanho que o nosso egoísmo ocupa no nosso coração.
A cruz. “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?” (Mc 15,34). Apesar de tudo. Apesar do caminho. Apesar de nós. Onde está Deus no fim desta nossa via ( às vezes) sacra? Onde mora a esperança?
A hora é de morte. O véu do templo rasga-se. A Luz. Depois da solidão, o colo da Mãe, o abraço que enlaça o cansaço e o embala numa eternidade de princípio. O abraço da Pietá é um abraço redondo que conduz ao céu.
O amor vence a pedra do túmulo que parece ser o fim do caminho. Amanhã, talvez amanhã, recomeçaremos outra via, às vezes, sacra. Vamos chorar, outra vez. E cair. E levantar. E cair. Vamos pegar na cruz. Na nossa e na dos outros. E vamos encontrar um olhar, uma mão, o colo de uma mãe que nos há-de recolher. Vamos morrer. Mas vamos ressuscitar.
É assim cada dia. A nossa vida é esta via (quase) sacra. Precisamos uns dos outros para carregarmos as nossas cruzes.
Vê a Luz? Não vamos sozinhos, afinal.

sábado, 26 de março de 2011


Há uma primavera em cada vida
é preciso cantá-la assim florida,
pois se Deus nos deu voz, foi para cantar!
Florbela Espanca

Bom dia. Hoje, traz um brilho diferente no olhar. É novo? Fica-lhe bem. Condiz com a frescura desta manhã azul de tão limpa.
Já viu o mar? Espelha a infinitude do céu. Traz notícias boas daquele lugar onde vivem os amigos que não estão connosco. Já beijou o calhau e adormeceu nos seus braços. A cidade está com inveja da calma daquelas águas. Porque está quase na hora e é preciso correr para não chegar atrasada.
Espere. É só um bocadinho. As folhas já rasgaram os troncos e as flores espreguiçam-se nos canteiros do caminho. Dantes, as andorinhas voltavam. ( Lembra-se de escrevermos isso nas redações? Lembra-se de irmos espreitar os ninhos nas árvores mais baixinhas?) Agora, não sei. Andamos tão distraídos!
Sente-se aqui comigo. Os bancos ainda estão vazios a esta hora: os turistas ainda dormem, os solitários ainda não saíram. Espreite comigo a primavera. Ela voltou, derreteu a neve dos montes e beijou a manhã. Parece que o tempo ficou sem pressa, que o mundo não está a chorar, que o país ainda tem solução. Ouça a vida que desponta no sorriso de quem passa e se espanta com o nosso espanto.
Sim, eu sei. Passo as frases a pedir-lhe coisas. Que olhe. Que ouça. Que repare. Que descubra flores onde o chão secou. Que sorria. Que. Que. Que. Sabe o que é? É que eu preciso de si para me obrigar a olhar, a ouvir, a reparar, a descobrir o sol que rompeu a solidão da noite, a perceber que o inverno acabou e que tudo vai recomeçar.
Peço-lhe que me acompanhe neste deslumbramento. É que hoje está especialmente luminoso. Preciso da sua luz para me acender a Primavera.
Fica-lhe muito bem esse sorriso. É novo?

Há uma primavera em cada vida
é preciso cantá-la assim florida,
pois se Deus nos deu voz, foi para cantar!
Florbela Espanca

Bom dia. Hoje, traz um brilho diferente no olhar. É novo? Fica-lhe bem. Condiz com a frescura desta manhã azul de tão limpa.
Já viu o mar? Espelha a infinitude do céu. Traz notícias boas daquele lugar onde vivem os amigos que não estão connosco. Já beijou o calhau e adormeceu nos seus braços. A cidade está com inveja da calma daquelas águas. Porque está quase na hora e é preciso correr para não chegar atrasada.
Espere. É só um bocadinho. As folhas já rasgaram os troncos e as flores espreguiçam-se nos canteiros do caminho. Dantes, as andorinhas voltavam. ( Lembra-se de escrevermos isso nas redações? Lembra-se de irmos espreitar os ninhos nas árvores mais baixinhas?) Agora, não sei. Andamos tão distraídos!
Sente-se aqui comigo. Os bancos ainda estão vazios a esta hora: os turistas ainda dormem, os solitários ainda não saíram. Espreite comigo a primavera. Ela voltou, derreteu a neve dos montes e beijou a manhã. Parece que o tempo ficou sem pressa, que o mundo não está a chorar, que o país ainda tem solução. Ouça a vida que desponta no sorriso de quem passa e se espanta com o nosso espanto.
Sim, eu sei. Passo as frases a pedir-lhe coisas. Que olhe. Que ouça. Que repare. Que descubra flores onde o chão secou. Que sorria. Que. Que. Que. Sabe o que é? É que eu preciso de si para me obrigar a olhar, a ouvir, a reparar, a descobrir o sol que rompeu a solidão da noite, a perceber que o inverno acabou e que tudo vai recomeçar.
Peço-lhe que me acompanhe neste deslumbramento. É que hoje está especialmente luminoso. Preciso da sua luz para me acender a Primavera.
Fica-lhe muito bem esse sorriso. É novo?

segunda-feira, 21 de março de 2011

SOBRE OS POETAS

Às vezes, as palavras queimam. Abrem lumes de prata na negrura da impossibilidade de as dizer. São lua que se derrete no mar. Luz. Música. Silêncio líquido.
Nasce, então, a poesia: poeira lírica do céu que a mão frágil do poeta semeia. Ousadia, talvez.
O poeta tem palavras enredadas nos dedos: rosários de amores e desencantos, de medos e de esperanças. Com elas, adoça a vida, escreve o mundo e partilha imagens como quem conta um segredo.
O poeta tem beijos na voz. E desenha com eles mapas de sentidos num tempo que não conta. Azul. Divinamente azul. Tecidos com fios de luz, bordados com o arrepio que o vento acende nas paredes dos olhos.
O poeta encanta a noite. Como Oriana, a fada boa da Sophia que, um dia, se esqueceu de si para se dar aos outros. Asas. O poeta tem asas na voz. Música. As palavras do poeta rezam na dança dos sons, na paz branca que deixam cair no silêncio das folhas.
O poeta é irmão dos seus irmãos de humanidade. Ama-os, na generosidade da sua entrega. Dá-se, na alegria de abrir o peito e de mostrar a luz que transmuta em palavras. Faz delas razão de ser quem é: artífice, grito, silêncio, mundo e vazio, tempo e eternidade, ilha e universo.

domingo, 20 de março de 2011

PARA O PAI

Quando o homem conheceu o medo, Deus inventou o pai. Criou-o forte, com mãos de abrigo. Fê-lo corajoso, com força de guerreiro. Fê-lo amigo, com um coração do tamanho do amor. Preparou-o para salvar o mundo que se guarda no corpo do filho.
No princípio, é remédio contra os pesadelos, mão que segura o nosso medo de cair, mestre de todas as coisas, companheiro da bola e da corrida, parceiros dos domingos cinzentos. Depois, é a voz que ensina os limites do tempo e da história; o olhar que corrige as fugas, o suporte que estrutura a vida, a liberdade que marca a hora dos regressos, que oferece o que não há, que ensina o que faz falta.
Pai é abraço na hora da indecisão. É protecção, quando o tecto se derrama e a chuva entra, molhando os olhos e afogando as flores. É sinal de
- podes vir,
quando os nossos olhos estão no chão e, arrependidos, queremos voltar para casa. É a prova de que o amor e a doçura não são apenas palavras femininas.
Conheço bem estas palavras. Graças a Deus. Trago-as no peito desde menina. Conheço a força do braço e a meiguice do sorriso. Um presente.
Por estes dias de Março, desenhamos a vida desse homem que cimentou os alicerces da nossa vida. Lembramo-nos das palavras, dos gestos, dos olhares. Se o temos connosco, continuamos a guardar o nosso medo no seu abraço. Se já não o temos, lembramo-nos do calor que ficou para sempre, dentro do nosso peito.
Por estes dias de Março, olhamo-nos e vemo-nos imagem dessa Figura que Deus, num momento sublime da criação, criou para nós, só para nós, mesmo que tenhamos mais irmãos.
O abraço. O exemplo. A raiz da nossa casa. O pai. Uma das invenções mais perfeitas do Artista.

quinta-feira, 17 de março de 2011

O deserto


Às vezes, temos o sol na algibeira, um riso grande nos olhos e cumplicidades escondidas entre os dedos. Gostamos de nós, nesses dias. Gostamos dos outros. Gostamos da vida.
Outras vezes, não. Percebemos que os nossos bolsos têm buracos por onde se escapa o tempo, o mesmo que desenha rugas no nosso rosto e nos pergunta, ao anoitecer,
- o que fizeste, hoje?
Nesses dias, damos conta dos nossos limites. Corremos de tal maneira depressa que a nossa alma fica para trás, suspensa num qualquer abismo, à espera daquele instante em que o caminho deixa de fazer sentido e temos de regressar para procurar o que perdemos.
O deserto é isto. Voltar para trás para reencontrar a alma e redescobrir o equilíbrio entre nós e nós, entre nós e a vida, entre nós e Deus. É nesta repetição de paisagens que o silêncio nos apanha e, de mãos dadas connosco, nos leva a passear dentro do peito, à descoberta das nossas florestas e dos nossos precipícios, das nossas esperanças e dos nossos medos. Quaresma é também isto: desenhar um caminho dentro de nós até encontrarmos o que vale, efectivamente, a pena. Quaresma é este encontro com os nossos lugares onde a tentação e a força se encontram, onde o Mal e o Bem lutam por nós.
Venha comigo. Desenhe o seu andar ao lado do meu. Vamos à procura do que nos resta de paz, de verdade. Vamos à procura do que o mundo nos roubou na pressa de o conquistarmos.
O tempo é este. Passamos o ano inteiro a medir as sombras das ruas, temos, agora, de aprender a ler a escrita dos céus. Passo a passo, façamos esta liturgia da caravana no deserto. Lado a lado. Assim, eu serei a força da sua fraqueza e você, o consolo da minha dor. O deserto esconde o silêncio de um Deus que matou a morte com a espada de uma cruz. O deserto ensina a saudade do que não temos, ensina a necessidade de procurar o poço que guarda a água, ensina a dar valor ao caminho que as estrelas indicam, ensina, na solidão e no silêncio amarelo desse mar sem fim, que é preciso ir.
Sente-se comigo nesta duna. Não há mais nada. Não se ouve nada. Apenas nós e o que somos. Peço-lhe que me perdoe as minhas imperfeições, as pequenezes dos meus atos e das minhas palavras.
Dê-me um abraço. Já não estamos sozinhos. Nem temos medo. O silêncio do deserto limpou-nos do que não é preciso.
Está a sorrir? Olhe, afinal, é o riso grande dos seus olhos que aquece o sol da minha algibeira. Do nosso abraço, brota a água para a nossa sede. Estamos mais perto de nós. Estamos mais perto de Deus.
Vamos continuar?

quinta-feira, 3 de março de 2011

SOBRE MÂOS

Lembra-se das mãos do seu pai e da segurança de a ter apertada à sua? Lembra-se da doçura da sua mãe, quando a ternura das suas mãos lhe limpavam as lágrimas-meninas das primeiras desilusões?
Pois, hoje, lembro-me delas. E deixo que a memória as aqueça na frieza das minhas saudades. É por isso que escrevo mão, com o espanto que a própria palavra me dita, com a boca redonda de beijo que o som único desta sílaba me diz. Escrevo mão e vejo nelas os olhos dos cegos e a voz dos mudos. Escrevo mão e desenho o movimento de cada gesto – o da mãe que, com elas, embrulha o corpo do seu filho, o do menino que agarra a mão do amigo e faz com ele uma roda, o do jovem que contorna o rosto do amor e entrelaça os seus dedos nos dedos do futuro, o do homem que lança a semente à terra para a recolher depois, o do velho, cansado, que a apoia na bengala, quando o chão lhe começa a chamar o corpo. Escrevo mão e vejo-a levantar-se para limpar as lágrimas que se escondem, depois, no bolso da solidão. Escrevo mão vejo-a conduzir outra mão, no lado a lado de que é feito o nosso caminho.
Olhe para as suas mãos. É só bocadinho. Sinta-as abertas, percorra os sulcos das linhas que lhes riscam as palmas. Pense nelas e no que elas já fizeram antes de segurarem esta folha de papel. Foram elas que iniciaram a manhã,
-em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo;
foram elas que acariciaram o sono do seu filho e lhe disseram, sem palavras,
-são horas, meu amor!;
foram elas que repartiram o pão e enfeitaram a imagem que vive dentro do espelho; foram elas.
E pense nas outras. Nas que, todos os dias, se levantam num aceno, nas que apertam as suas, nas que lhe seguram as dores. Pense nas mãos que tratam das suas feridas, nas que trabalham para que a sua vida seja melhor, nas que fazem aquilo que as suas não fazem, nas que se estragam para que as suas continuem bonitas.
Pense nessas mãos. As suas e as dos outros. As que o trouxeram à luz e as que, um dia, hão-de fechar os seus olhos. As que são a paleta de Deus. As que fazem com que este dia seja melhor.
Agradeça a sua presença na sua vida.
Já beijou as mãos de alguém? Hoje, beije também as suas.
Pronto. Agora sorria. Vamos trabalhar.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

POR CAUSA DO AMOR

“Foi o tempo que perdeste com a tua rosa que tornou a tua rosa tão importante…”
Saint-Exupéry, O Principezinho
Falamos de amor. Dizemos
- amo-te
e envolvemos as palavras em corações de giz, enfeitamo-las com rosas vermelhas sempre em botão, cobrimo-las de chocolate e pomos-lhe uma fita à volta.
Escrevemos “amor” nas esquinas da nossa juventude e acreditamos que basta que as mãos se encontrem e os lábios desenhem, baixinho, juras de fidelidade eterna. Fazemo-lo, olhando o mar que explode em espumas no corpo das rochas. Fazemo-lo, bebendo as estrelas que penduram alegrias na noite. Fazemo-lo, no aconchego – concha dos braços que nos protegem do frio.
Pensamos “amor” e dizemos “nós” como se o futuro fosse simples, fosse apenas a soma de eu+tu, assim, como se não houvesse mais nada, como se mais nada fosse preciso, como se isso bastasse.
Sentimos “amor”, porque amor é palavra de se sentir. Tem vida e sofrimento colados a cada sílaba. Porque compromisso. Porque entrega. Porque disponibilidade. Porque para o outro.
Talvez Deus tenha oferecido as asas ao Amor. Talvez este Valentim que o mundo festeja e que tem asas também, signifique mais do que um dia. Talvez seja o tempo [porque o tempo também tem asas] de levar a sério cada olhar que se derrama noutro, cada mão que se encontra e se enlaça e se entrelaça, cada abraço que mistura dois corações e os fazem bater em coro. Talvez seja a hora [porque a vida é um instante] de entender que quem ama transfere a sua felicidade para a felicidade do outro.
Lembram-se da rosa d’O Principezinho? Foi preciso regá-la, tratar dela, protegê-la. Foi preciso dar-lhe espaço para crescer por si. Foi preciso matar as lagartas que ameaçavam as folhas novas que despontavam do chão. Foi preciso pensar nela como se ela fosse aquilo que de mais importante havia no mundo.
É assim o amor. Tal como a rosa, passa a precisar de outro coração para ajudar o seu a bater.
“- Sou responsável pela minha rosa… - repetiu o Principezinho, para nunca mais se esquecer”.
Agora, sim: uma flor, um chocolate, o mar, o pôr-do-sol. A vida tem uma fita à volta. O futuro, também. Um presente para quem se ama.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Dia Mundial do Doente - Oração


Senhor,
sinto-Te aqui, à beira da minha cama, segurando as minhas mãos, limpando as minhas lágrimas, aconchegando-me os lençóis, quando a solidão quer deitar-se comigo. Tenho sentido, também, aqui comigo, a Tua Mãe que me tem velado o sono e aquecido o peito. Sei que lhe pediste que ficasse à minha cabeceira, para me ajudar a lutar contra o medo.
Sei que conheces esta angústia que, às vezes, entra no meu quarto sem bater à porta. Sei que entendes esta dificuldade que tenho em depender de outras mãos, em precisar de outros braços – abraços , de olhar para a parede branca e não ver nela senão uma parede branca.
Por isso, meu Amigo, fica comigo esta noite. Porque a noite é feita de um tempo que não passa e que dói de imobilidade. Manda a manhã acordar mais cedo e trazer um bocadinho da vida que já nasceu lá fora. Pede ao sol que se levante e me aqueça o quarto, só um bocadinho.
Olha para a pequenez do meu corpo encolhido pela doença. Olha para a minha fragilidade. Toma a minha dor nas Tuas mãos. Ajuda-me a levar a cruz que se derramou na minha vida e a saber encarar a escuridão com o sorriso que as estrelas me ensinaram a desenhar, quando eu era pequena.
Fica comigo. Faz-me entender o significado deste sofrimento que, hoje, me dói no corpo e na alma. Segura a minha vida e não permitas que me perca de mim, da minha esperança. Não me deixes cair na tentação de obedecer ao abismo que me puxa e me traz aos olhos este mar que me salga as palavras.
Cuida dos que cuidam de mim. Abençoa as suas vidas. Agradece-lhes, por mim, cada momento que me oferecem, cada sorriso que me dá confiança, cada palavra, cada gesto, cada silêncio. Dá-me coragem para vencer este cansaço e força para continuar a sorrir.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

No Hospital

Deixe a luz acesa. Talvez as noites fiquem menos escuras e o medo não doa tanto na cama do hospital.
Deixe a porta encostada. Talvez a solidão se escape pela fresta e os barulhos da vida entrem mais cedo na enfermaria.
Fique mais um bocadinho. Assim: a aquecer a frieza da mão que se apaga sobre os lençóis imaculadamente engomados, cruelmente brancos. Conte do mundo, dos carros que engolem as estradas, da pressa de fazer as coisas, dos miúdos que vão bem na escola, do frio que faz tremer as madrugadas, dos próximos capítulos da novela. Fale do mar e das marés e dos segredos que as ondas dizem à praia, quando a cidade se cala e se prepara para dormir. Diga que vai haver futuro, que o sol vai voltar a aquecer os ossos cansados da mesma posição, que a alegria vai chegar porque, quem hoje está aqui, amanhã [o mais tardar, para a semana), vai voltar para casa.
Olhe para eles – são médicos, enfermeiros e cuidadores. Trazem a esperança presa à brancura da bata; prescrevem possibilidades em cada remédio, emprestam uma bengala em cada palavra e, em cada olhar, uma nova razão para não morrer.
Vê a mão de Deus atrás das deles? Talvez nem eles A vejam. Mas Ela está lá, no carinho que oferecem a quem sofre, aconchegando quem não se levanta, na ternura com que compõem o cabelo de quem o tem colado à almofada, no beijo, no olhar que fixa o aparelho que ajuda a viver, na mão que ajuda a partir.
Fique mais um bocadinho. Quem está no hospital precisa muito de si, da sua atenção, da voz da vida que se colou à sua voz, da saúde que o seu corpo traz, do seu silêncio, da sua força.
Tem de se ir embora? Está bem. Volta amanhã?
Não se importa de deixar a luz acesa? E, por favor, deixe também a porta entreaberta. Pode ser que assim a dor doa menos e a noite pareça mais curta.
Muito obrigada por ter vindo. Até amanhã.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Uma sopa ou um abraço?

Um prato de sopa pode calar a fome, um abraço alimenta a vida. Falo assim, saciada de sopa e de abraços, no calor de uma lareira que me aquece o inverno. Falo da sensação de não estar só e poder falar de mim e dos meus sonhos e poder ouvir dos outros e das suas vontades. Falo assim porque a vida me tem oferecido o dom da amizade, o milagre de poder partilhar o que tenho e o que sou.
- Está bem, eu conto.
Imaginem a serra despida no frio. Imaginem uma casa no meio da floresta. Uma lareira. Uma panela ao lume. Imaginem o cheiro da sopa de trigo, sempre que alguém a impede de pegar no fundo,
- Vê o sal.
Imaginem um copo de qualquer coisa a animar a gargalhada, a fatia de pão que se corta e que se passa, na intimidade de quem divide a vida.
- Para enxugar.
Imaginem as mãos geladas que a tigela aquece, as que serviram o vinho, as que passaram o pão,
- Queres que te leve alguma coisa?,
as mesmas mãos que, um dia, limparam as lágrimas, ampararam a queda e seguraram as fraquezas.
Imaginem as conversas, no redondo das cadeiras, na confluência dos pés, no aconchego do estalar da lenha. Imaginem uma viola a mandar calar o vento que, lá fora, despenteia as árvores do quintal. E as vozes, às vezes embargadas pelas dores de cada um. E as palmas que encobrem quem desafina ou quem se esquece da letra a meio da canção.
Imaginem a força que se bebe num encontro de amigos, dos que sabem respeitar as ausências, dos que sabem a importância dos silêncios, dos que se apresentam quando é preciso, dos que estão quando é preciso estar.
E é tão fácil! Basta a vontade. Basta uma panela de sopa temperada com a alegria de quem se quer bem. Basta a capacidade de ser de alguém, na generosidade de quem tem abraços para dividir.
E pronto. A memória guarda o momento. O coração vai buscá-lo quando for preciso. Então, o lume mantém-se mais tempo aceso na lareira, o trigo da sopa faz-se pão e a vida fica muito mais feliz.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Povo Marinheiro

A bordo da ilha, navego pela vida à procura de novos horizontes. Sou marinheiro do tempo e vou dobrando os Bojadores, na ilusão de encontrar a felicidade que se esconde atrás da linha azul do oceano.
Se a brisa é branda, tenho saudades do vento que me despenteia o cabelo; se o vento é forte, as minhas mãos cansadas perdem a força de lutar. Se o sol me aquece a cabeça, tenho vontade de uma nuvem que me proteja da bebedeira de luz que me tolhe a vontade. Se a pele me seca, tenho saudades da chuva mas, se chove, tenho medo que a tempestade me faça perder o leme. Se o barco avança, não tenho tempo de apreciar o azul do céu e os gritos das gaivotas, mas quando a marcha é lenta, sinto que adio o mundo que me falta ver. E não sou feliz.
Salto, muitas vezes, no cais. E fico à espera de outras ilhas, perdidas também, à procura do que não têm. Somos muitas, dispersas por esse mar com saudades de um lugar que não existe, de um momento que já passou, de uma vontade impraticável.
Partilhamos, então, a nossa solidão. Falamos das nossas procuras, das nossas pressas de amanhã, da nossa fome de ir embora, das nossas marés, de nós. Temos as nossas ilhas amarradas no pontão. Passamos as cordas e fazemos com elas uma jangada.
A minha ilha torna-se passagem para outra ilha que é caminho para outra. Partilhamos quem somos: rocha ou areal, flor ou borboleta, brisa ou calor. Partilhamos o que sabemos: que os rios correm sempre para o mar, que as flores se enfeitam para o beijo do sol, que a noite se acende para que o luar a abrace, que as nuvens se encontram para conversar.
Nesses momentos, temos saudades de Deus. Dizem que Ele é a tal linha que divide o mar. Dizem que Ele guarda o segredo dos continentes. Dizem que é Lá que está a Felicidade. E vamos.
A bordo da Ilha, iço as velas. Levo as outras ilhas comigo. As outras ilhas levam-me consigo. E vamos, devagarinho, ao sabor da vida. Se a brisa é branda, ouvimos o silêncio. Se o vento é forte, não nos arrasta, porque não vamos sós.
Quando anoitece, lançamos as âncoras. Juntamo-nos na ilha maior, a do coração. Aconchegamo-nos à esperança e dizemos baixinho à ilha do lado,
- Cuida de mim!

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Vamos plantr a saudade?

Os olhos da ilha estão postos no mar. Os nossos também. Esticamos o nosso horizonte até à saudade. E percorremos a vida até chegarmos ao lugar exacto onde o tempo nos separou de alguém e fechou portas que, um dia, estavam abertas.
Um anjo sobrevoa o nosso olhar. Traz-nos gargalhadas penduradas nas asas, histórias antigas, canções de embalar. Traz-nos lembranças de Deus e da alegria de uma festa que já se arrumou nas caixas e se guardou no fundo do armário.
Temos saudade, sim. A nossa história ensinou-nos a definir as ausências, a acreditar nos regressos, a gerir os sentimentos que ficam no cais, quando o barco se afasta e os olhos chovem sobre o silêncio.
Temos saudades de quem já não está, do que já não se vive, do que já não se pode sentir. Temos pena de não ter aproveitado mais cada momento, cada beijo, cada aperto de mão, cada palavra que enfeitou o desespero, cada sorriso, cada manhã.
Os meus olhos sentaram-se, hoje, ao balcão e olharam a distância como se fossem os olhos da ilha. E perceberam como é bom isto da saudade, esta dor que não magoa, porque feita de amor, porque feita de beijos que a vida nos dá e nos permite ir buscar quando o mar é apenas água salgada.
E resolvi que havia de plantar saudades. Posso precisar delas qualquer dia. Posso precisar de sentir quanto valeu a pena viver a minha vida. Já temos o terreno – o coração. Falta apenas fazer a sementeira. Precisamos de sorrisos, de palavras boas, de gestos, de abraços. Precisamos de amigos, de amor, de entrega. Precisamos do sopro de Deus que os outros nos oferecem. Precisamos de coragem.
Esta semana, vamos plantar a saudade. Fazer da vida um milagre. Abrir as portas de ser feliz. Esta será uma semana para guardar na memória. Um dia, podemos vir a precisar dela, naqueles dias em que a poesia não se senta à mesa connosco e os olhos, debruçados no mirante, não conseguem ouvir a canção do mar.

sábado, 15 de janeiro de 2011

O FIM DA FESTA


Apagaram-se as luzes. De repente, a noite ficou mais noite e a cidade mais triste. Fica sempre no ar esta nostalgia, quando a Festa se quer ir embora, antes de se acabarem os jantares, as
- continuações!
ainda vestidas de janeiro e o varrer dos restos No Santo Amaro.
As lojas já guardaram o que sobrou e fazem saldos do que já não faz falta para este ano. Na minha casa, a lapinha ainda está montada, a árvore ainda me pinta os serões de saudades, os sinos ainda tocam, nos montes de papel pintado que a humidade fez descair.
Os Reis vieram, cantaram e regressaram às suas terras, levando com eles o cantar das janeiras, a alegria do ano novo, as broas e os licores que ainda havia nos armários. Voltámos à vida real, ao tempo quase sem tempo para se viver.
Os olhos do espelho perguntaram por mim. Queriam saber se os meus olhos tinham uma luz diferente. Os meus olhos responderam que não, que está tudo igual, que o meu mendigo continua na mesma esquina, com a mão estendida e o olhar cansado, que os meus braços continuam à procura de abraços, que não tive roupas novas para vestir as minhas palavras, que não quero desmanchar o presépio que comecei a construir dentro de mim.
Os olhos do espelho fixaram os meus. Queriam saber o que eles mostravam: se abismo, se medo, se esperança. Os meus olhos disseram que sim, que tinham aprendido a sobrevoar o medo e a olhar a escuridão, com a esperança do Menino que tinha adormecido no berço do meu olhar. Os olhos do espelho mostraram aos meus que, afinal, ainda havia muita coisa para fazer, antes de dar por terminada a Festa do Natal.
Lá fora, os colares das árvores e as gargantilhas das ribeiras já perderam o brilho, mas os olhos do espelho querem continuar a brilhar. Têm lá dentro a alegria. Guardam os sonhos brancos de Deus. Guardam a vontade de ser feliz. Guardam o silêncio das ruas que, dentro deles, se quer travestir de paz.

sábado, 8 de janeiro de 2011

SOBRE PALAVRAS

Deixem falar as palavras. Deixem-nas pousar no lugar certo, como se fossem borboletas à procura do sol. Há asas no corpo branco das sílabas que se aconchegam a outras sílabas para dizerem de si e do que significam.
Embrulhem as palavras no silêncio. Dêem-lhes espaço para serem voz e doçura e poema. Há lágrimas cristalizadas no vazio que as palavras não dizem. Segredos. Amanhãs por acordar. Mistérios.
Sintam o gosto feliz das palavras novas: esperança, coragem, alegria. As palavras desenham começos nas manhãs: são voos de liberdade, sol no chão preto e branco da calçada, luz derramada dos telhados. As palavras são abraços.
Deixem que elas se vistam com a sabedoria que o tempo lhes conferiu. Cada palavra guarda a alma do que significam – amor, amigo, saudade, gargalhada.
Agarrem o poder das palavras. Com elas se beija e se mata. Com elas se acolhe e se maltrata. Com elas se chama a vida, porque são elas que dão nome às coisas e às pessoas e a Deus que “no princípio era o Verbo” (Jo.1, 1-3).
Por elas se recebe o mundo e a felicidade. E se entrega o que temos, o que somos, o que queremos ser.
Deixem falar as palavras: as vossas e as de quem vos escuta. Descubram a poesia que dorme atrás do que não se diz.
Deixo-vos as duas primeiras:
-bom dia.
Contem, depois, quantos sorrisos conseguiram abrir.
[Não sentiram que a manhã ficou mais bonita?]
O resto é convosco.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

JANEIRO

Janeiro é o mês primeiro, o alicerce do resto que o ano há-de trazer. Por isso, vou falar de chão: de pedra ou de areia, de flores ou de cacos, mas chão.
Não pensei nisso quando olhei para o céu e o vi rebentar em cores, desenhando nos meus olhos os sonhos, os desejos e os projectos. Não pensei nisto quando senti os abraços de quem amo, de quem me ama, de quem continua por aqui, comigo.
Penso nisto agora que a vida recomeçou e que cada passo que dou me lembra que este é o tempo de começar de novo, de preparar o que me falta de vida para viver.
Por isso, chão: de rocha firme ou de pântano, campo seguro ou areal efémero.
Janeiro é a terra onde nascem as resoluções para o sempre: deixar de fumar, começar a dieta, marcar o ginásio, ir ao médico, poupar um bocadinho mais.
É o mês-chão onde se planta o futuro: ter cuidado com as pedras que a boca atira, chamar o silêncio para aplacar as tempestades, beber o sol e embebedar-se de luz, dizer que sim, que se precisa de mãos, que se quer um abraço, que se acredita, que se vai ter coragem para procurar a felicidade.
Escrevo chão, hoje. E nele ponho a vontade de fazer um ano bom. Escrevo chão e lanço nele as sementes das minhas palavras, o luar das minhas noites, o beijo das minhas solidões.
Escrevo chão porque é janeiro. Nele construo a nossa casa. Nele abraço a vida e espero. Nele quero ser feliz.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

DEPOIS DO NATAL, O NATAL

E pronto. O dia de Natal acabou: levantou-se a mesa, arrumou-se os presentes, guardou-se a louça da festa, apagou-se a lareira e o que ela implica de gente à volta. De repente, escondeu-se o abraço e perdeu-se a alegria, no meio dos papéis de embrulho que sobraram.
Já se voltou ao trabalho, às contas, à correria da cidade. Os olhos lambem, gulosos, os saldos que as lojas anunciam. Os sinos calaram-se, um pouco assustados com as bombas que prepararam o fim do ano. Os meninos já espalharam os brinquedos pelo chão da sala, porque os brinquedos só têm interesse no momento em que os laços são arrancados e lhes dão a ilusão de que são felizes porque têm tudo o que pediram.
O que ficou, então? As roupas que, afinal, não são o que pareciam nos manequins das montras? As sobras da comida que se deita fora, a pensar na fome dos outros? O buraco que fica no ar quando as gargalhadas se calam? O eco azul das vozes dos anjos que já não há tempo de ouvir? A cabeleira verde das searinhas que é preciso aparar?
Dentro de nós, talvez tivesse ficado o cheiro das tangerinas que importámos da nossa meninice, o brilho doce das purpurinas coladas ao tapete, o som das palmas do Menino acabadinho de nascer, o calor do beijo da mãe,
- Boas festas, meu amor!
que se guarda para sempre, junto do silêncio protector do pai.
Ficou o momento cristalizado do abraço que se segue ao presente que custou tanto a comprar, a lágrima que deslizou para a mão do doente que alguém velou no hospital, o beijo na mão de quem estendeu o prato de sopa a quem ficou só, neste Natal.
E agora? A verdade é que a lapinha ainda está montada, as luzes ainda rasgam de cores a noite das ruas, o tempo ainda cheira a perfume. Portanto, a proposta é guardar o Natal dentro de nós, naquele sítio onde se guarda o que é bom, onde se deposita a esperança e o sorriso gaiato de quem acredita no futuro. Depois, quando os dias de luz acabarem, vamos ao fundo do peito buscar o que falta: a ternura do Menino, o aconchego da Mãe, a serenidade do Pai, a alegria dos pastores, a paz dos anjos.
Preciso de si, agora. Ajude-me, por favor, a não deixar morrer o Natal. Conto consigo!
- Boas Festas!

sábado, 18 de dezembro de 2010

VIRGEM DO PARTO


A noite ainda anda pela cidade, fria, estremunhada, despenteada do descanso que, por estes dias da Festa, acaba mais cedo. A garganta da noite está presa no sono que é preciso afastar, depressa, na urgência das campainhas que já não se ouvem mas que continuam a tocar dentro da gente, no canto da nossa meninice.
Estamos dentro da noite, arrumando os passos em direcção à Missa do Parto, sorrindo à Virgem que está prestes a dar à Luz. Por instantes, somos parte de uma comunidade que só se vê de vez em quando, mas que se junta para aquecer a madrugada.
Virgem do Parto
Ó Maria,
Senhora da Conceição.
Somos personagens do presépio, pastores talvez, e enfrentamos a geada,
Dai-nos as Festas Felizes
A paz e a salvação.
Entrámos na noite e o dia amanhece dentro da igreja. A estrela do Natal já deixou a sua luz nas velas que afastam os nevoeiros. Os olhares procuram outros olhares, as mãos, outras mãos, as vozes juntam-se a outras vozes, roucas também, e enchem a manhã de uma paz argentina.
Depois, a festa. A do adro. Como antigamente, quando se rompia o silencio, soprando os búzios, tocando as gaitas, cantando. Esta era a hora de perceber o que o escuro tinha deixado escondido: um sapato de cada cor, o fio puxado nas meias, o pijama que teimava em sair pelas pernas das calças. Vinha, depois, a gargalhada, ao som do rajão, o cheiro doce do licor, a estreia das broas, o café de saco a enganar o bocejo e a manhã, já acordada, a iluminar a porta da igreja.
Como todos os anos, inebriamo-nos na alegria destas novenas e vamos antecipando a Festa. Cada missa do parto é um encontro novo. Ficamos mais perto da gruta de Belém, mais perto, cada vez mais perto.
- Até amanhã. Agora, vamos trabalhar.

domingo, 12 de dezembro de 2010

E quando A Festa se atrasa?

Às vezes, acontece: a Festa não coincide com o Natal. E, nesta altura, quando a dor chega, dói mais fundo e o sol demora mais tempo a aparecer.
Às vezes, parece que a alegria da rua ofende as tristezas de dentro de casa. As luzes queimam os olhos que se fazem maré por estes dias. A música perturba os silêncios dos lutos que se choram e se guardam no Natal, também no Natal.
Há casas onde A Festa se vai atrasar. E não será fácil, eu sei. Nunca disse que ia ser fácil ouvir o Glória dos Anjos e chorar, ser Natal e ver o chão a abrir-se, olhar para a estrela e vê-la a apagar-se, mudando o nome da noite e chamando-lhe medo e solidão.
Hoje, gostava que as minhas palavras tivessem algum valor e se revestissem de um pouco de ânimo. Gostava de dizer que, mesmo que, este ano, a Festa se atrase um bocadinho, o Menino Jesus há-de trazer coragem, a Senhora há-de embalar as nossas dores no aconchego do seu manto, S. José há-de cuidar de nós, os pastores hão-de pôr-se a caminho do lugar onde mora a felicidade, a estrela há-de voltar a incendiar o nosso riso.
Se soubesse, escrevia, hoje, palavras de abraço; pendurava um pouco da minha Festa nas árvores que vão ficar vazias este ano; ensinava a ouvir o silêncio que cura e a fixar o olhar na meiguice doce do Menino; mostrava a melhor forma de construir os presépios que vão ficar sem nada.
Se soubesse, escrevia “Amanhã” e enchia a palavra de “vai ser melhor do que hoje”; escrevia “alívio” e a dor doía um bocadinho menos; escrevia “sol” e o nevoeiro derretia-se nas linhas que me sobrassem; escrevia “paz” e uma ternura branca e branda curaria as feridas de quem está a sofrer este Natal.
Não disse que ia ser fácil, não. A Festa vai chegar. Talvez venha este ano um pouco atrasada. Mas, enquanto a dor não passa, vamos deixando que os sinos abram clareiras de Natal na noite de cada um.
Às vezes, acontece: a Festa atrasa-se um bocadinho, mas o Natal acontece na nossa vida, se o deixarmos acontecer.
in Jm 12/12/10

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A Senhora da Lapinha

Disse que sim e sorriu. A serenidade tomou conta dos olhos de Maria e o mundo ficou em paz. Vejo-a, assim, no meu Presépio. Olha para o Menino que adormeceu, na doçura do seu olhar e ensina-me o valor da disponibilidade, do serviço, da vida que se escreve, em cada dia, no silêncio de nós.
Nas palavras que cala, a Senhora da Conceição, diz-me que é preciso saber esperar. Apesar da loucura das compras e da vida, apesar do medo do amanhã, apesar do vento que quer arrancar a esperança, é preciso saber esperar. Contra todo o desespero.
Sigo a direcção do seu sorriso. As asas dos meus olhos pousam na pobreza de um Menino que sorri de dentro do sonho do Seu Natal. Lembro-me, então, de outros natais, em outros tempos, de uma ansiedade doce, do nome Jesus escrito no peito, da saudade da inocência, do dia de estrear a roupa da festa.
A Senhora da lapinha sorri. Eu também sorrio à criança que fui. Do fundo de mim, o sorriso da Senhora da Lapinha diz-me que sim, que é preciso lutar contra o vazio dos sacos cheios de compras, que é preciso acender a alegria, que é preciso contrariar o cinzento da manhã, que é preciso abrir um sorriso nas janelas das casas. Do fundo de mim, o olhar terno da Senhora da Lapinha aponta-me o Deus pequenino, diante do qual se ajoelha, por causa de Quem é quem é.
Disse que sim e sorriu. Ensina-me, hoje, o valor do silêncio. Mostra-me que é possível fazer Natal na pobreza das coisas. Diz-me que a felicidade tem outros nomes, que vive dentro das casas, que se escuta na música do sorriso, que se agarra na mão que segura outras mãos, que se pinta na paz branca que se restaura, todos os dias, dentro de nós.
- Mãe, a Senhora não dorme?
E a mãe diz que não. Ela tem de velar o Menino que tem nos braços. A Senhora da lapinha tem de velar os filhos durante a noite dos seus desencantos, para os impedir de morrer.
A Senhora da Lapinha sorri. Eu também.
in JM de 8/12

domingo, 5 de dezembro de 2010

POR CAUSA DE UM PRESÉPIO (AINDA) VAZIO

Já está. A cidade começa a acender-se no frio luminoso de Dezembro. As casas aquecem-se ao sol e deixam entrar a luz e um pouco da música que o vento traz das bandas do mar. Já cheira a broas acabadas de cozer. Já se acendeu uma vela, a primeira, a que anuncia que a Festa está aí, pendurada no céu das ribeiras, no lavado das cortinas, nos braços das árvores que são as margens das ruas.
Vou entrar, agora, em casa. Deixo-me ficar no segredo de mim e olho o que já está feito: a árvore já está montada, no verde ecológico dos novos tempos, cheia, guardadora de magias antigas e memórias boas do tempo em que se contavam os dias que faltavam para o Natal; o papel pardo já está pintado e pronto para forrar os caixotes que se hão-de encher com as histórias dos pastores que se preparam, na serra inventada, para visitar o Menino Jesus.
Vou ficar aqui, um bocadinho. Ainda não há figuras no presépio da minha casa. Está vazio. Como em Belém, antes da estrela chegar. Como em muitas casas, este Natal. Apesar das compras e das montras e dos presentes. Apesar da embriaguez das luzes.
Deixo-me ficar assim, parada, no meu presépio vazio. O de dentro. Tenho de o compor antes que a noite caia.
Deixo-me ficar. Fico a ouvir o tempo. Vem nas asas da música que a minha memória traz. Vem no cheiro da acácia que, dantes, perfumava a casa. Vem no silêncio do meu presépio vazio. Vem de mim.
As caixas com as imagens já saíram do armário. Amanhã, se Deus quiser, vão começar a contar a história deste Natal. Agora, tenho de tratar do outro, do verdadeiro, do que tenho de construir dentro do peito. Outra vez. Como ontem. Como tenho de fazer todos os dias.
in JM 5/12/10

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

quase na festa

Na vizinhança da Festa, arrumamos a vida. Limpamos a casa que somos e descobrimos o que fomos guardando ao longo do tempo: flores secas, datas gravadas em livros amarelos, postais do tempo em que ainda íamos ao correio, cartas de remetentes que já não o são, fotografias antigas, sonhos misturados com as contas que talvez ainda estejam por pagar.
Abrimos as janelas que dão para o lado do mar. É então que o vento norte nos conta notícias dos que já não se vão sentar à mesa deste Natal e nos diz que sim, que estão bem, que têm saudades. O mar inunda, então, os nossos olhos, falando-nos de glórias antigas, de um tempo azul de felicidade em que tudo era possível e não havia tempestades a impedir a viagem.
Agora, nas imediações da Festa, acendemos as estrelas para nos iluminarem o caminho, abrimos intervalos de verão no inverno das Palavras, preparamos o peito para receber quem vem. Talvez sejam os olhos dos miúdos a lamberem, gulosos, as montras de brinquedos. Talvez sejam as luzes que, apesar de trémulas, ainda desfazem as sombras escondidas nas paredes, nem que seja pela eternidade que dura a ilusão. Ou o cheiro a lavado dos armários onde se escondeu, o ano inteiro, o medo de partir os copos, de sujar as toalhas, de arriscar a vida. Ou o grito dos sorrisos que olham o recibo do ordenado que, este mês, parece um bocadinho maior e talvez chegue para acender a alegria no peito dos mais pequenos.
A noite faz-se mais música, por este tempo. E traz, em cada nota, o cheiro a cal de outros tempos, a frescura dos lençóis novos que se comprava para a Festa, o sabor frio que as tangerinas colavam nos dedos. Temos todas estas coisas no fundo das gavetas, escondidas como um tesouro debaixo do forro. Pusemos-lhe coisas em cima: a doença, o desencanto, o vazio das ausências, o medo nocturno do futuro.
Temos de ir buscá-las, agora, nas limpezas da Festa. Elas guardam a magia de transformar as lágrimas nas bolas coloridas do pinheiro. E falam de um tempo, de outro tempo em que, com menos coisas, éramos mais felizes.
Já falta pouco, falta muito pouco, para que um Menino nos volte a falar, outra vez, mais uma vez, de Esperança.
Estamos quase na Festa. Temos de nos despachar.
in JM 1/12

sábado, 27 de novembro de 2010

Sobre a noite


É preciso acender uma lua redonda na noite deste céu. É preciso abrir buracos de luz no areal imenso do desespero. É preciso voltar a sentir o beijo do mar na orla da praia. É preciso plantar a esperança no que resta das cinzas da montanha que, apesar da raiva do lume, continua de cabeça levantada.
Andamos tão tristes, nas vésperas deste Natal! Estamos asfixiados no medo do futuro, na precariedade do trabalho, no vazio da carteira, na incapacidade de olhar o sol de frente, na (quase) impossibilidade de acreditar que, um dia, voltaremos a ser pessoas felizes.
Hoje, a minha voz quer ser um grito. Porque é urgente que se fale do milagre de acordar cada manhã, que se revele o segredo dos sorrisos, das gargalhadas, dos abraços, da amizade, que se ensine a pendurar gambiarras de alegria nas varandas das nossas casas.
Hoje, a minha voz quer ser um prado onde o olhar descanse na cama verde do chão ou um mar azul-coragem que lembre partidas e regressos, vontades e amanhãs. A minha voz quer ser o que não há: esperança, esperança, esperança.
A minha voz quer ser. Isso, simplesmente: voz. Dar vida às palavras que têm alma dentro: amor, solidariedade, justiça, verdade. A minha voz quer falar da Vida que nasce em cada momento e que, tantas vezes, se esconde atrás do que não vale a pena. Porque é urgente falar da vida.
Hoje, a minha voz é a voz de quem ainda acredita que é possível – que há-de ser possível! – voltar a acender a lua, uma lua redonda, na noite deste céu.